terça-feira, 12 de janeiro de 2010

A ARTE DE SABER OUVIR

Sobre a postagem "Quem não lê não escreve", que publiquei aqui no blog, ontem, e na qual fiz referência aos ensinamentos que me ofereceu a professora Angélica Paiva, no Seminário São Pio X, em Santarém, o juiz federal do Trabalho Océlio de Jesus Carneiro de Moraes, natural de Monte Alegre, no Oeste do Pará, ele também seminarista naquele distante ano de 1976, mandou o texto abaixo, já publicado anteriormente no Blog do Jeso, em junho de 2008, uma manifestação pública de gratidão à mesma Angélica Paiva.


A ARTE DE SABER OUVIR

por Océlio Morais (*)

(Em gratidão à professora Angélica Paiva)

1. A liberdade de pensamento e a liberdade de expressão são dois invioláveis direitos inerentes ao ser humano. Invioláveis porque são direitos naturais. As democracias inteligentes alcançaram esses direitos em suas constituições, às categorias de princípios. E por isso também são enquadrados na categoria de direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, como o fez a nossa Constituição Federal
de 1988.

2. Mas o exercício do pensar e do expressar estão, ontologicamente, dentro de uma outra lógica: a arte de saber ouvir. Essa arte de ouvir é difícil, especialmente quando a pessoa perdeu o contato com o silêncio de seu coração e, de outro lado, sempre se considera cheia de razão. E por isso, só tem valor o que pensa e o que lhe interessa. Menospreza e desvaloriza outros pensares, ainda que cheios de virtudes.

3. Disso resulta o ensimesmamento egoístico, embora as atribulações e atribuições da vida criem a impressão corriqueira de que tudo isso seja comum. Mas isso é catastrófico ao homem e às suas relações interpessoais. E por quê? porque não o deixa ouvir o conteúdo real das palavras, não o deixa pensar com o pureza do silêncio e, por isso, perde o sentido da arte de saber ouvir.

4. O não saber ouvir leva ao desastre de não saber pensar e ao melancólico resultado de não saber se expressar. Acaba não havendo comunicação interativa. E as conseqüências disso, regra geral, são a incompreensão e são as desavenças. É isso que isola o homem de si mesmo e dos outros.

5. A tendência, então, é todo homem se tornar juiz de todo homem. Das coisas e do mundo. Do dito e do não dito. Do feito e do não feito. Dá-se pouca ou nenhuma importância aos conteúdos e aos sentimentos por dentro das palavras, exatamente porque a sintonia da comunicação – que é a arte de saber ouvir – está travada. Está fechada. Está mortificada pelo sentimento ensimesmado daquele que perdeu a sintonia consigo mesmo. (…)

6. A arte de ouvir não se confunde com o mero escutar. Quem sabe ouvir tem sempre o espírito aberto ao seu próprio silêncio. E à voz do outro. Ou seja, pacientemente ouve o outro como ouve o seu próprio coração. A arte de saber ouvir é, antes de tudo, o respeito ao pensamento e à expressão do outro, ainda que não comungue com aquele pensar.

7. Eis, precisamente, a questão que o evangelista Tiago (Cap. 1:19) chamava a atenção: “(…) todo homem deve estar pronto para ouvir, ser tardio para falar e tardio para se irar”.

8. Nos meus tempos de seminarista, no São Pio Décimo, em Santarém, encontrei uma mulher sábia. Ela sempre estava pronta para ouvir, sabia ouvir o silêncio e sempre a todos os seminaristas estimulava esse mesmo prazer e respeito de saber ouvir: era a professora Angélica Paiva.

9. Ela tinha um especial sentimento de respeito pelo silêncio criador. Nas suas aulas de Português e de Redação, distribuía os seminaristas pelo pomar. E dizia: “Mocinhos, ouçam o silêncio da natureza. E criem um conto, um poema, uma prosa, uma crônica…”.

10. Não dava para imaginar, àquela época, os efeitos que a voz do silêncio produziria na minha vida futura. Mas o silêncio envolvente da natureza, que ela tanto estimulava a ouvir, na verdade era o propiciar ao encontro de cada pulsar e ouvir do coração em contrato com a sabedoria que vinha dos aromas silenciosos, mas fluentes, daquele pomar.

11. A lição milenar que o evangelista Tiago legou à humanidade e tão singularmente vivida e retransmitida pela professora Angélica Paiva tem, de fato, um efeito mágico: se refletida com paciência, resgatará a capacidade de ouvir e, como natural resultado, promoverá o reencontro com o silêncio do próprio coração.

12. A arte de saber ouvir é, pois, uma virtude. Exercitá-la é um gesto de coragem que deve ser cultivado diariamente. Disso resultará o verdadeiro princípio da liberdade de pensamento e da liberdade de expressão, pois esses princípios são caros à tolerância das idéias contrárias e caras ao cultivo do respeito à dignidade humana.

13. A arte de ouvir exercita a virtude da tolerância – virtude que revela outra virtude: a sabedoria, bem vivida por muitos homens sábios e tão bem como expressada pela cultura árabe: “se o que você vai dizer não é mais belo que o silêncio, não diga”, Ou como disse o escritor Rubens Alves: “Somente sabem falar os que sabem fazer silêncio e ouvir”.

14. “É no vazio da jarra” – ensina a filosofia oriental – “que se colocam as flores”. Assim posso concluir: ouvir o silêncio não é ouvir o nada. Nem ficar tateando o vazio. É ouvir e entender o conteúdo real por trás da palavra, na voz ou na escrita do outro, com a mesma intensidade sincera que se ouve o próprio coração.

15. E, então, começaremos a entender o significado dos princípios ao respeitoso exercício da liberdade de pensamento e da liberdade de expressão – filhos naturais da arte de saber ouvir, e, essa, mãe da tolerância, a virtude que precisa ser mais exercitada.

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* Océlio Morais é juiz federal do Trabalho, titular da Vara de Capanema

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