sexta-feira, 2 de abril de 2010

O TROVÃO E O ARROTO

Octavio Pessoa*

Noutra crônica, que já está pronta, eu conto um causo de um caboclo que fez uma promessa esquisita para o padrão comum das promessas. Mas lendo um escrito do Rubem Alves, concluí que “O Salvagé estava certo”. Fica para a próxima vez, porque o Gláucio Silva, meu colega de traquinagens lá em Parintins, me fez lembrar um causo ainda no tema da “Medicina da Mãe Maria”.

O artista principal é o Raimundinho, primo do Gláucio. Aliás, é páreo duro definir quem é o personagem mais importante. O Raimundinho ou o Mestre Espalha Brasa, pai de santo e “doutô” de muita gente. Você decide.

Curumim saliente e apresentado, Raimundinho aprontava todas. Nesse dia, depois do futebol com bola de seringa e pés descalços, como toda a molecada, o pequeno estava ofegante de cansaço. Mesmo assim, ele resolveu fazer um goló-goló. Pegou o maior cupuaçu que encontrou no terreiro e prááááááááá, quebrou a casca da fruta no tronco da própria “álvore”. Aí começou a chupar os caroços com sofreguidão. Mastigava a massa, tirando a polpa até o final, chega os beiços dele ficava lambuzado com aquela baba amarelada. Aí, ele cuspia o caroço lisinho, lá adiante. Mas não parava de contar pavulagem.

A molecada já estava toda no golo-goló quando, do nada, ouviu-se um estrondo pavoroso, um trovão daqueles que faz defunto levantar do caixão. Era o anúncio de mais um toró. Aí o Raimundinho saiu correndo, zigzagueando pelo terreiro, agitando os braços. Peste endiabrado, a molecada nem se importou. O cuirão podia estar saudando o deus dos trovões. Só que, depois, ele se abostou no chão, tremendo todo.

Foi aí que o finado Come Breu, fabricante de bolas de seringa, que passava com um saco cheio de bolas que ele ia vender no Mercado Municipal, arriou o saco no chão, pegou o moleque nos braços e gritou com sua voz aflautada:

- Vixe Maria! O curumim está morrendo sufocado! Abaixo de Deus, só quem pode salvar ele é o Mestre Espalha Brasa. V’ambora, essa gente!

Foi aquela verdadeira procissão de moleques, à frente o Come Breu, com o Raimundinho no colo. Todo mundo na direção da casa do Luiz Gonzaga, que no quintal abrigava a choupana do mestre Espalha Brasa.

Chegando lá, parecia que o “doutô” já tinha adivinhado a chegada do “cliente”. Não houve necessidade de qualquer explicação. Sem dar uma palavra, botou o curumim meio em pé meio sentado, num tamborete alto e de braços, com um buraco no meio do que se poderia chamar de encosto do banco. Raimundinho que, a essa altura, já passava do roxo pro azul, com a veia pastora, como diziam, prestes a espocar, só emitia um chiado fino e mexia só com os pés, que não paravam de tremer.

Mestre Espalha Brasa começou logo uma reza atrás da outra. De repente, parou de braços erguidos, como se estivesse recebendo uma iluminação. Então, começou um ‘procedimento”. Pegou um barbante ensebado e modelou no pescoço de um cachorro pirento que não parava de passar pelo meio da curuminzada. Benzeu o “colar” e colocou no pescoço do Raimundinho. Mestre Espalha Brasa rezava, dando voltas em torno do quase finado, soltando fumaça do charuto. Foi numa dessas passadas por trás do Raimundinho, que o Pai de Santo deu uma mordida no charuto e tacou um soco nas costas do coitado. O curumim soltou um arroto que pareceu o eco do trovão e projetou o caroço de cupuaçu, que foi cair lá, a uns dez metros de distância.

Durante muito tempo, a discussão era o que salvou o Raimundinho: as rezas do Mestre Espalha Brasa ou a porrada que ele levou nas costas? Você decide.

O fato é que, até hoje, o Raimundinho anda lá por Parintins, contando história. Quanto ao cupuaçuzeiro que nasceu daquele caroço, se a especulação imobiliária na Ilha de Tupinabarana permitiu, talvez ainda esteja por lá, produzindo aquele cupuaçu da melhor qualidade. Mas a “álvore” pode também já estar caduca. Dando cacau, pitanga, pupunha ou goiaba. Aí, a explicação prá essa mutação teratológica já fica por conta do Gláucio, que é engenheiro agrônomo. Dos bons.

* Jornalista, advogado e auditor federal de controle externo.

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