Octavio Pessoa Ferreira*
Esta Fuluca não é aquela do pum e do desmaio, no velório da dona Mariquinha, que quase não foi enterrada, mas “sargada” pelo desconsolado filho, Mundinho Mandii.
Aquela era donzela militante e juramentada, virgem até de boca. Só colecionava santinhos, estampas Eucalol e almanaques Fontoura, desde o internato no colégio Santa Dorotéia, de Manaus, onde concluiu o pedagógico e se tornou professora primária.
Depois do fatídico baque com a cabeça no castiçal, ficou meio zuruó. Com o olho arregalado prum lado, o beiço arriado pro outro, andava meio de banda, parecendo um carauaçu, um peixe do rio Amazonas de nado irregular que os ribeirinhos dizem que “se ingera de um sapo”.
Ela deu prá sonhar com mortos. De uma só vez, sonhou com velha Iaiá Maranhão, o Timboné e o Vavanilo, pinguços da cidade, o Bito Cachimbo, o velho Zuada, a dona Ilózia, parteira da cidade, o velho Chico Coveiro e dona Mariquinha Mandii, que sempre lhe acenava com um lenço branco. Égua! Prá mim, isso não foi um sonho, foi uma convenção no além. Nove meses depois dessa mórbida assembléia geral, a pobre coitada esticou as pernas, finalmente atendeu o chamado de Mariquinha. Morreu de cólica.
Esta Fuluca era o contrário daquela. Militou na mais antiga profissão do mundo, desde a adolescência. Dizem que foi destampada por um índio da tribo Prati-Wai, que, aculturado, virou pai de santo e incorporava o caboclo “Seu Verruma”. Rodou pelas cidades do médio e baixo Amazonas, acabando como empresária de novatas em Soure, no Marajó.
A Pensão da Fuluca era a mais requisitada da cidade. Frequentada por jornalistas, médicos, advogados, agrônomos e outros boêmios de menor largura. Era lá que nós, estudantes do Augusto Meira e, depois, universitários, marcávamos ponto, nas curtições sourenses. Velhos tempos! O ponto de encontro, aos sábados, era na antiga Lanchonete LR, no começo da João Alfredo, quando o centro comercial de Belém ainda era respirável. Ficávamos por ali, até a partida do Presidente Vargas, do Almirante Alexandrino ou da chatinha Plácido de Castro. Íamos pro Mosqueiro ou pra Soure. Em Mosqueiro, descíamos direto para o Praia Bar, onde o Gláucio Silva já entrava dançando. Ah, como era bom!
Em Soure, depois da praia do Pesqueiro, com muita cerveja, caipirinha, caranguejo ao toc-toc e pratiqueira frita, jogo de futebol e outras transas, a pedida era a Pensão da Fuluca, um ambiente singelo e aconchegante. Num antigo sistema de som, que acentuava os agudos, rodava desde o rock dos já separados Beatles, jovem guarda, carimbó e siriá, xote, forró, merengue e muito bolerão. E haja Édna Fagundes: “Desde o dia em que te vi, amei sinceramente/Eu te juro meu querido, amor eternamente”. As meninas se deliciavam, fungando no cangote da gente.
Figura marcante da Pensão da Fuluca era a única garçonete, a Nhanhã. Até hoje, nenhum de nós sabe, penso eu, o verdadeiro nome da Nhanhã, como nos referíamos a ela, por causa do seu fungado. Cabocla marajoara de lábios grossos e revirados, com a boquinha no jeito de chupar cabeça de pratiqueira. Mas ela gostava mesmo é de dançar. Dançava bem e de tudo. Gingado era o da Nhanhã.
Só que o divertimento dela tinha uma consequência. Os fregueses tinham que esperar por ela para serem atendidos. Isso deixava Fuluca muito invocada com a Nhanhã.
O sol raiava num certo domingo, os fregueses já estavam mais agoniados do que cachorro em popa de canoa. Mas era impossível pagar a despesa porque a Nhanhã estava dançando um merengão. Houve quem ameaçasse pendurar a conta no prego. Foi aí que a Fuluca, mais prostituta com duas sílabas do que nunca, pegou o “tar de nicrofone” e mandou ver:
- Alu, alu galçonete! Alu, alu galçonete! Pur favur, cuirona, vem atendê as mesa. Senão depois quem toma no ... (monossílabo tônico) su eu!"
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Recebi e-mails de leitores que lêem minhas crônicas através de listas de que participo, sugerindo a inserção de um glossário com o significado dos “ricos termos da linguagem amazônica”, mas desconhecidos para muitos. Sugestão acatada. Segue adiante, glossário não só com esses termos, mas também com informações sobre temas e assuntos abordados e desconhecidos por quem é mais novo que eu, por exemplo, estampas Eucalol. Os termos estão na ordem que aparecem no texto.
* Estampas Eucalol - Estratégia usada pelos irmãos Stern, fundadores da Perfumaria Myrta, para aumentar a venda do sabonete, da pasta de dente e do talco Eucalol. Eram estampas juntadas aos produtos, que os usuários eram estimulados a colecionar. Foi um sucesso. (conheça mais, pesquisando no Google “Estampas Eucalol”)
* Almanaque Fontoura – revista anual de divulgação publicitária do Biotônico Fontoura, distribuída gratuitamente como brinde pelas farmácias do país, de conteúdo recreativo e informativo de curiosidades, idealizado originalmente por Monteiro Lobato. Trazia conteúdos como horóscopo, dias bons para pesca (fases da lua), passatempos e até histórias em quadrinho, como a de Jeca Tatuzinho, baseado no personagem lobatiano, Jeca Tatu.
* Zuruó - Amalucada, abestalhada, adoidada, zureta, zoró.
* Carauaçu - peixe amazônico meio azulado que tem a trajetória de nado, irregular.
Pros caboclos ribeirinhos, o carauaçu “se ingera de sapo”.
* Égua! – expressão na linguagem amazônica, especialmente paraense, de múltipla serventia. No caso, uma expressão de espanto.
* Esticou as pernas – bateu a caçoleta, comeu capim pela raiz, morreu.
* Destampada - desvirginada, descabaçada.
* De menor largura - menos importantes
* Pratiqueira - peixe miúdo e muito apreciado, especialmente como tira-gosto.
* Cangote - região do ângulo formado pelo pescoço e o ombro.
* Uma ponta – uma gorjeta.
* Cuirona - safada, sacana.
*Jornalista, advogado e auditor de controle externo.
Um comentário:
Grande Otávio!
Tuas crônicas, que aqui tenho publicado com enorme prazer, remebram personagens da minha infância e juventude, vividas em Santarém, no Baixo Amazonas. Essa da Pensão da Fuluca é ótima!
Quem será que foi nossa "Fuluca mitocrôdica"? Pergunto isso porque essa personagem parece ter sido replicada em algumas outras cidades da região.
Em Almeirim, por onde andei nos anos 80 e 90, lembro de ter ouvido falar de uma "dona Fuluca", mas que não se escondia por trás de uma pensão: era puteiro, mesmo. Mas não posso garantir a história, pois não conheci o "ambiente".
Mas em Santarém ela existiu, com certeza! Lá também era "puteiro", simplesmente. Local dos mais frequentads e famosos, atraia muita gente. Nos finais de semana, o "rala-bucho" rolava solto. Também não conheci o local, mas as histórias e os testemunhos são fartos e as fontes, confiáveis.
Meu pai, Dinaur Pedroso, na época à frente do "Conjunto do Pedroso" tocou muito lá. Ele ainda se refere a ela, hoje, como "Tia Fuluca", de forma carinhosa, mas certamente que essa relação não foi além do profissional.
Cheguei a acompanhar o papei em alguns locais onde o conjunto tocava - não existia essa denominação "banda" para identificar os grupos musicas; bandas eram os grupos de fanfarra escolares. Fui com ele ao Veterano, no bairro da Aldeia, ao Clube Atlético Cearense, acho que no bairro do Carnazal, e no Fluminense, na época um dos mais requisitados. Mas ele não me levou à Tia Fuluca. Tinha lá seus motivos. Devia considerar que o ambiente era apenas para trabalho, como no seu caso. Além do mais, eu era "de menor".
Tia Fuluca não deixava que qualquer menina dela fosse "se dar a conhecer" a algum rapaz sem o prévio conssentimento dela. Ela tratava cada uma como se fosse filha. A maioria delas morava no próprio local: vindas do interior ou de outras cidades, não tinham para onde ir. Não deixava que nada faltasse a elas. Também não permitia bagunça no local: ela se impunha pelo respeito e botava pra fora qualquer valentão ou quem quisesse se inxirir com alguma de suas meninas ou a destratasse.
É possível, Otávio, que outras cidades também tenham tido suas "Fulucas", mas a Fuluca mitocrôndica jamais poderá ser encontrada, pois, como disseste, elas militavam na mais antiga profissão do mundo.
Parabéns, Otávio, pelas crônicas! Vá mandando novas daí. Este espaço também é seu.
Um grande abraço.
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