sábado, 1 de maio de 2010

O SALVAGÉ É QUE ESTAVA CERTO

Octavio Pessoa *

O educador e cronista Rubem Alves, no livro “Ostra Feliz Não Faz Pérola”, ao abordar o tema religião, aponta a gritante contradição entre os presentes que damos às pessoas amadas e os que oferecemos a Deus. Para a pessoa querida, diz ele, a gente pensa antes de comprar. Seja uma flor, um CD, um brinquedo ou um livro. Queremos sempre agradar o presenteado.

Para seduzir Deus, nas promessas que lhe fazemos, usamos o artifício “Se me deres o que eu peço, eu te darei aquilo de que gostas”. O que a pessoa promete manifesta o pensamento dela a respeito do caráter de Deus, prossegue o cronista, para questionar em seguida: por que não fazemos promessas do tipo vou ler poesia meia hora por dia? Vou ouvir música ao acordar? Vou brincar uma hora com meu filho? Não. As promessas feitas a Deus são sempre de sofrimento - fazer caminhadas de joelho, passar seis meses sem beber refrigerante, fazer jejum, e por aí vai. Pergunta, então, Rubem: é o nosso sofrimento que faz Deus feliz? Que Deus sádico é esse? E, então, faz questão de esclarecer: se alguém blasfema, não é quem faz essas perguntas, mas “quem promete a Deus casca de ferida”.

Achei o máximo essa reflexão de Rubem Alves. E, recordando minha infância, passei a não ter dúvida de que o Salvagé é que estava certo.

Salvagé era o capataz das propriedades de meu falecido pai. Era um homem simples e rude, um vaqueiro do tipo que hoje não mais de vê. Conhecia a região como a palma da mão dele. Tirava até a tipuca (o segundo leite) das vacas leiteiras, a quem ordenhava chamando cada uma pelo nome. Vaquejava gado como ninguém. Quando cansava a mão direita, usava a canhota para laçar os animais. Amansava poltros e ainda contava causos aos demais vaqueiros e a quem quisesse ouvir, nas prosas noturnas.

Certa feita, ele levava um rebanho do sítio São Joaquim pro retiro Santa Rita, no lago do Macaco. No meio do caminho, uma novilha se afastou da manada. Ele ordenou ao Roxo Zuada, seu auxiliar, que prosseguisse tocando o rebanho e saiu em perseguição à fujona.

A rês, que parecia possuída pelo demo, embrenhou-se pela mata de igapó e fez o valente Salvagé suar mais do que de costume. O sol já se punha no horizonte, quando arriou um temporal daqueles. O céu escureceu. Depois de muitos raios e trovoadas, arriou aquele toró. Mas ele não desistiu de sua meta: recapturar o animal. Homem de fé, se pegou com Deus e São “Binidito”.

Já era noitinha, quando ele chegou com a novilha arrastada pelo chifre. Agradeceu os aplausos com um gesto largo e fez questão de dar umas lambadas no trazeiro da cuirona que pôs em risco sua liderança, tocando-a para dentro do curral. Salvagé se impunha aos demais peões pelo exemplo.

Peãozada reunida em noite estrelada de verão, a conversa era uma só: a trabalheira que o Salvagé tivera para recapturar a novilha e a sua bravura. Roxo Zuada dizia: - Vá pílula, parente! Sigo esse caboco até de baixo dágua.

Foi aí que o Salvagé anunciou que precisava cumprir uma promessa. Começou a tomar cachaça. Foram três garrafas de Tatuzinho, tirando gosto com queijo de coalho, lingüiça e farinha baguda. Madrugada alta, os peões já meio “calibrados” e o valente Salvagé ainda contando causos e causos. A certa altura, ele parou e afirmou que beber três garrafas de Tatuzinho era apenas a primeira parte da paga da promessa que fizera. Precisava cumprir a segunda parte.

Deu uma piscada pros peões com um sorriso maroto, pediu licença e se dirigiu prá casa, onde Raimundinha, a mulher dele já estava escanchada, esperando por ele. Foram três dias seguidos que o casal só saía do quarto prá tomar gemada. Era quando Salvagé dava ordem pros outros vaqueiros. No amanhecer do quarto dia, eles finalmente deram o ar da graça, pro restante do pessoal. Raimundinha estava mofina (fraca, pálida). Salvagé foi pra beira do curral, tomar leite mugido.

Nove meses depois, ouviu-se o choro alto de mais uma cunhantãzinha, morena de olhos gateados. O nome não podia ser outro: Maria de Deus. Ela completou a felicidade do casal e se tornou a alegria da família e da fazenda.

É isso aí, Rubem Alves, você me fez entender que o Salvagé é que estava certo.
*Jornalista e advogado, Auditor Federal de Controle Externo. O blog publica, periodicamente, crônicas de Octávio

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