Rio Cupari, no oeste do Pará, deverá abrigar 29 pequenas centrais hidrelétricas já inventariadas pela Aneel. A União tudo decidirá sobre as obras, sem que o Estado do Pará e os municípios da região possam interferir ou se beneficiar (Foto: Blog do Manuel Dutra)
Essa disputa entre o Instituto Brasileiro dos Recursos Naturais
Renováveis (Ibama) e a Secretaria de Estado de Meio ambiente e Sustentabilidade
(Semas) em torno do direito de licenciar os projetos hidrelétricos do rio
Cupari, tributário do rio Tapajós, no oeste do Pará (http://www.ver-o-fato.com.br/2019/07/decisao-judicial-ibama-vai-assumir.html), serve para bem ilustrar
uma contenda sobre as concepções de federalismo e, mais especificamente, sobre o
modelo criado e adotado pelo País – muito diferente, por exemplo, do federalismo
americano.
Sem ainda entrar no mérito sobre os danos ao meio ambiente e
os prejuízos à população regional a ser atingida pela execução dos oito
projetos iniciais de pequenas centrais hidrelétricas (PCH) – oito de um total
de 29 inventariadas pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) –,
parece-me acertada a decisão do juiz federal Arthur Pinheiro Chaves. Não sou
advogado. Não tenho, claro, autoridade para debater ou questionar contendas de
ordem jurídica. Acho que o Estado do Pará colhe resultados negativos de sua
omissão diante de direitos que lhe foram usurpados desde que o Código das
Águas, de 1934, sofreu alterações profundas.
O Código das Águas repartia o uso, exploração e benefícios
dos recursos hídricos nacionais entre a União, os Estados e os Municípios,
ainda que o domínio destes dois últimos fosse limitado. Mas repartia
atribuições e domínios. Já a Constituição Federal de 1988 determina que “São
bens da União”, exclusivamente, “os lagos, rios e quaisquer correntes de água
em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, ... (Art. 20, III)
e “os potenciais de energia hidráulica” (VIII). Creio não haver dubiedade no
texto.
A atual CF é de 1988. Seu artigo 20, e particularmente os
incisos III, VIII e IX (“os recursos minerais, inclusive os do subsolo”), é
altamente nocivo aos interesses de estados que tenham grande potencial
hidráulico, como os estados da Amazônia. A CF completou 30 anos. Impressiona
que, desde então, nenhum senador ou deputado federal paraense tenha se atentado
para o prejuízo que esse texto constitucional causa ao Pará, propondo modificá-lo;
impressiona que, no processo constituinte, parlamentares de estados da
Amazônia, do Centro Oeste, do Nordeste e Sudeste – a maioria, portanto –, onde estão
os rios com maior potência hidráulico, não conseguiram aprovar um texto que
garantisse aos estados e municípios compartilhar esses bens. E mais: nenhum dos
governadores paraenses eleitos desde então, parece perceber
essa necessidade urgente/urgentíssima de se propor uma PEC que altere o texto
constitucional, permitindo que estados e municípios possam legislar, licenciar,
explorar e fazer gestão desses recursos.
Na segunda-feira passada (30/06), uma delegação de vereadores
de municípios da sub-região da Calha Norte, na região oeste, esteve em reuniões
com o governador do Estado, o presidente da Assembleia Legislativa do Pará,
deputado Daniel Santos, e o coordenador da bancada federal no Congresso
Nacional, deputado Eder Mauro. A todos entregaram um documento que propõe uma
série de propostas voltadas ao desenvolvimento regional. Entre elas, “Apresentação
de Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para alterar o Artigo 20 da Carta
Magna nacional, permitindo aos Estados e Municípios compartilhar com a União a
propriedade dos recursos hídricos e minerais existentes no Pará e a
responsabilidade pela exploração destes, usufruindo de seus benefícios”.
Não é aceitável que apenas vereadores de um dos rincões mais
pobres do Pará, mas rico em recursos hidráulicos e minerais, tenham uma visão
estratégica sobre a exploração desse patrimônio natural, enxergando-o como
elemento indispensável ao desenvolvimento regional. Diante da proposta, o
governador respondeu que o Estado tem parlamentares de qualidade, mas em número
insuficiente para conseguir aprovar a PEC. Ou seja, não há rios em nenhum outro
estado da Nação.
“É preciso alterar o Artigo 20 da Constituição Federal, de
forma a permitir que Estados e Municípios compartilhem do direito de legislar,
licenciar, explorar e fazer gestão desses recursos. Não é tolerável que se
aceite passivamente que a União tudo possa e tudo decida sobre a exploração dos
recursos naturais existentes em nosso território. Estes recursos são a
principal fonte potencialmente propulsora do nosso desenvolvimento
socioambiental", afirma o documento entregue ao governador do Pará, ao deputado Daniel Santos e ao coordenador da bancada federal no Congresso Nacional, deputado Eder Mauro.
Os municípios da sub-região da Calha Norte querem viver esse
desafio de ser protagonistas do próprio desenvolvimento, unindo forças com o
Governo do Pará, a Assembleia Legislativa do Estado e a nossa bancada federal
no Congresso Nacional. Precisamos romper as amarras que mantém o Pará como um
estado colonizado e subdesenvolvido. As compensações financeiras que o Pará e
seus municípios recebem (Cfem e Cfurh) são de valores irrisórios. Elas mais se
parecem aos espelhos e outras quinquilharias doados pelos colonizadores
portugueses aos indígenas brasileiros, nos anos 1500, em troca do pau-brasil e
do ouro aqui pilhados”, completou.
Os vereadores da Calha Norte voltaram otimistas com respostas
que receberam a outras demandas. No dia 24 de julho, na cidade de Óbidos, eles
vão criar a Associação das Câmaras Municipais da Calha Norte. Estão decididos a
ser protagonistas na política regional e, para isso, querem inverter essa
lógica perversa de que a exploração de seus recursos naturais seja razão para
mais pobreza e dependência.
O resultado final da disputa
judicial entre o Ibama e a Semas sobre o licenciamento de projetos de pequenas
centrais hidrelétricas no rio Cupari, no oeste do Pará, não será diferente do
que é Belo Monte: a União tudo decidirá, o Pará e os municípios diretamente
afetados não serão ouvidos nem consultados, mas receberão míseros reais a
título de Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Hídricos (Cfurh). É
o que manda a Constituição Federal e leis subsidiárias. O Pará se conformará com
espelhos e outras bugigangas, como aqueles dados aos índios brasileiros, nos
anos 1500, pelo pau-brasil e o ouro aqui pilhados. A não ser que proponha uma
PEC para mudar as regras atuais.
Até que isso aconteça, se acontecer, o rio Cupari e a população local já estará, provavelmente, na condição de vítimas, sem que os municípios da região e o Estado do Pará possam dizer ou fazer algo.